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6 de dez. de 2019

Flutuando como uma pena



Já faz tanto tempo, ainda (e só) lembra seus sapatinhos brancos de furinhos, as quedas no quintal rústico cheio de pedras e barro.

Os primeiros passos do corpo, da existência, a quedas, o levantar, a persistência, finalmente o dominar a grande arte de caminhar e se aventurar no futuro todo que tinha pela frente: campos, árvores, estradas...

Agora o mundo seria grande de se admirar, brincar, conquistar...Será que em tenra idade teria estes pensamentos?



Um dia viu os mesmos passos no filho, a sentença se repetia cheia de esperança, agora com a consciência que não tinha quando vivera aquele momento. Magia.

Os braços estendidos eram a palavra chave para o pequeno se atrever. Suas mãos o apoiariam quando caísse em suas tentativas. Um sorriso largo lhe diria:

-Vamos, você consegue!

Não viu seus primeiros passos, mas vibrou com o relato sobre eles.

Logo o veria correr pelos pisos impermeáveis da modernidade, poucos campos, árvores e estradas.

As texturas da natureza longe dos pés não foram limitantes para as descobertas.

Nunca foram, nunca serão em tempo algum.

Tudo muda, é natural.

A vida passa muito mais rapidamente quando se gera e/ou zela por outra vida.

Ganhamos vida enquanto sentimos o tempo passar para enfim nos levar.


Envelheceu.

As pernas já não correm.

Os braços não são fortes, mas ainda acolhem.

Certo dia a tempestade chegou enquanto estava no ônibus. A porta se abriu em sua parada, a enxurrada mal deixava ver a calçada.

Medo de descer, das águas, dos joelhos. Medo da falta do vigor destemido deixado para trás.

Não via mais os sapatinhos brancos com furinhos ao olhar para os obstáculos...Via o degrau, o abismo entre ele, as águas túrbidas e a calçada.

Segundos se passaram no silêncio da indecisão.

Antes que se decidisse, um rapaz que nunca vira e descera na frente, voltou e estendeu os braços:

-Venha, você consegue!

Os braços foram acolhidos pelas jovens e fortes mãos.

Assim desceu em segurança, com o apoio dos braços e mãos desconhecidas, humanas.

Já na cobertura do ponto de ônibus, agradeceu com emoção e o desejo de que a vida lhe retribuísse.

Nunca saberá se era um esquerdopata comunista ou um direitista fascista.

Era humano, naquele momento.

A vida é cíclica, mal nos damos conta dos passos dados em cada fase da vida e no peso deles.

Uma pena soprada ao vento.


Dalva Rodrigues
06/12/2019




Duas cenas maravilhosas do filme Forrest Gump.



Corra, Forrest, corra!



A pena,  na cena final