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8 de mai. de 2021

Campos minados e solos férteis


Sinto agulhadas em minha cabeça, como se fossem o pulsar do sangue a martelar estranhamente em pontos estreitados nesse mar de veias e artérias que inundam meu velho corpo.
Elas chegam sem consentimento e eu aguardo, em serenidade, cada nova fisgada até cessarem.
É como esperar uma visita não anunciada, mas pressentida; até que entre um segundo e outro cessem as pontadas, espero que sem dor, sem dramas, sem traumas, sem lágrimas, sem passado, sem presente, sem futuro. Acabou.
A visita chegará e não estarei para recebê-la.
A porta aberta trará o silêncio do que não existe, a casa vazia, corpo sem alma, o descanso a ocupar o espaço das astuciosas garras humanas, das falsas vozes doces  murmurando seus desejos egoístas, conspirando,  chantageando, ludibriando para obter vantagens.
Ando cansada dos rumos da revelada sociedade  pós-verdade, da hipocrisia, do descaso, da falta de união, das cobranças que só alimentam a próprio criatura, das indiretas, dos inconvenientes invasores de território pessoal e emocional, da liberdade e socialização rasa que sem ser convidado julga sem conhecimento de fato e sem empatia.
Onde andará o bom senso,  respeito e limites? As trevas da ignorância e maldade cada vez mais ganham forças, principalmente nas ondas virtuais que também refletem na vida real e nelas navegamos,  em um mar cheio de armadilhas perigosas dispersas entre pessoas realmente boas e reais.
Não deveria ser o contrário, sabedoria e bondade ao alcance de todos?
Ando exausta de ver atiradores de flechas afiadas rumo ao alvo fatal para desmerecer o que julga inferior ou em quem não corresponde seus desejos.
Cansei de campos minados de palavras, insensibilidade e ignorância assumidas com orgulho.
Sementes daninhas germinam e brotam ilusões em solos  manipuláveis e carentes de tudo. Isso é desgastante, cansei do silêncio dos bons diante dos maus.
O peito abriga o coração, músculo que pulsa vida, toda forma de amor. Mas com o passar do tempo ele endurece e talvez nem doa mais, nos acostumamos com a dor e ela se transforma em nó na garganta, na falta de vontade de viver no mundo como ele se apresenta, em trevas, apesar de toda beleza natural.
A cada agulhada nas profundezas de meu cérebro, sinto a ânsia de um corpo diluído em matéria orgânica voltando ao solo fértil da natureza que traz a paz da não existência.
Uma hora a flecha acerta no alvo, na cabeça, 
na ideia, no coração...Na mosca. 
Quando o pulsar cessa, fica o vazio do não existir na imensidão,  essência que volta ao ciclo original da vida, vingando em solos férteis entre ruínas de civilização. Plenitude.

Enquanto não me acertam fatalmente no alvo, caminho procurando atalhos para fugir de campos minados e quando não houver jeito, que eu passe despercebida como uma folha seca e esmigalhada ao chão.

Oração do Narciso 
( o inconveniente, porque esse é o que incomoda)

Eu, eu, eu, eu...
Infinitamente eu onde tudo é meu.
Que eu seja prioridade dos humanos. 
Deuses, sempre me ouçam em primeiro lugar. 
Reservem-me o lugar especial ao lado de seus tronos de ouro e poder.
Onde eu possa seduzir e comandar mentes e corpos: 
Ame-me.
Seja presente, seja intenso, 
me sirva, me venere, 
me receba, me presenteie, me ajude,  
me leia, me curta, me consuma...
Alimente meu eu.
Vinde a mim todas as pessoas, luzes 
e o além, posto que sou imortal.
Amém. (longe de mim)

Dalva Rodrigues
08/05/2021

There there - Radiohead