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6 de jun. de 2021

Sebastião (conto)

Enquanto estrelas forravam o céu, na terra as janelinhas mostravam as luzes opacas das brasas de lenha  em cada humilde casinha de pau a pique da colônia erguida entre morros em uma  pequenina cidade de Minas Gerais, no final dos anos 20 do século passado.

Moradas abrigavam corpos cansados pela lida na roça, no terreiro e nos cuidados domésticos. 
Em cada casebre havia páginas invisíveis de histórias não contadas em livros, a oralidade se expressava naturalmente como sementes de dente-de-leão se semeando, levadas pelo ventos nos campos e brotando na terra acolhedora.
Os causos estimulavam a imaginação de toda gente, grande ou pequena, era desejo de conhecimento mesmo que inconsciente. Assim histórias eram repassadas e preservadas até que morressem quando ninguém mais as passassem adiante ou quando ninguém mais quisesse ouvi-las. 
Vividos ou repassados, os contos eram contados preferencialmente em dia de descanso semanal, em noites de luar, sem pretensão de palavras solenes, pois mal conheciam o beabá, nem mesmo as crianças conseguiam estudar adequadamente pelas dificuldades de acesso à escola.
As palavras ingênuas eram quase cantadas aos ouvidos curiosos de conhecimento e de outros horizontes além das montanhas que raramente transpunham. 
Eram momentos de reunião e alegria onde todos participavam, até os animais de casa e de criação.
Em dia de festa então, não faltava moda de viola e sanfona trazendo diversão ao terreiro compartilhado, todos vestiam roupas de festa cerzidas pelas mulheres da colonia: xadrez, floral, bandeirolas e flores coloridas de papel.
Ali ninguém possuía o teto onde habitavam, estes, pertenciam ao dono da terra, das plantações, da venda, de tudo que ousavam imaginar existiria além das montanhas conhecidas. 
Na prática havia um dono de corpos, a ele deveriam erguer as mãos aos céus,  agradecer o trabalho pelo pão de cada dia, vestimenta e teto, sem nunca reclamar. 
Acreditavam, no entanto, que suas almas a Deus pertencia.
-Senhor, olhai por nós!


Depois de um dia de labuta a noite esperada de descanso vem chegando, crianças repousam, já lavadas da poeira de quem precocemente já faz parte da rotina árdua de sobrevivência.
Numa das casinhas, em colchões de palha espalhados na terra batida, a família se ajeita para o sono restaurador.
Ainda sentem no ambiente o cheiro de angu com ovos, taioba e torresminho que alimentou a família logo que o sol se despediu no horizonte.

O calor da brasa amena no forno/fogão de barro aquece o cômodo único e mantem aquecidas as sobras para a refeição da madrugada antes de saírem para a roça.
É preciso estar com a barriga forrada logo cedo para aguentar a lida no cafezal e garantir as migalhas que sobravam do ordenado calculado pelo dono de tudo. 
Os dias de trabalho começavam antes dos primeiros  raios do sol, antes mesmo das aves cantarem.
Depois da rápida refeição, carregando seus bornais, chapéus e enxadas caminhavam juntos ainda no escuro até o cafezal. Chegavam junto com o sol que iluminava as plantações, os dias e mostrava as horas no céu.

 Antes de dormirem a oração da matriarca é ouvida por todos em silêncio respeitoso, dela vinha a sensação de proteção divina, força para a labuta inquestionável e necessária no dia seguinte.
As paredes de barro muitas vezes ocultavam os insetos transmissores de doenças, no cantinho de uma delas  dormia Sebastião, agarrado às mamas da mãe. Mirrada como ele, era a dona do alimento mais rico que havia por ali a lhe servir. Sugava o leite com sofreguidão se apegando às gotas de vida, de afeto contado e dividido.
Era fruto dos tempos em que controle de natalidade era o não me toque, a negação, era o desejo sufocado, rejeitado, temido, era o medo de outra vida colocar no mundo para sofrer.
Mas a vida insiste, entre uma negação e outra, a insistência surda prevalecia e nova vida era gerada, mais uma boca para alimentar, neste mundão a sofrer.
Assim um dia chegou ao mundo, Ião, como carinhosamente Sebastião era chamado. Franzino, uma mistura de etnias, pele parda, traços de preto, cabelos crespos e castanhos que herdara do avô português, olhinhos de bugre caramelados e curiosos, ainda não sabia o quanto o mundo era grande e o tanto que teria para descobrir. 
Tinha quase dois anos de resistência e sobrevivência.
A colonia era o mundo do pequeno, ajudava alimentando a criação mesmo com seus passinhos curtos. 
Com olhinhos atentos aprendia com as crianças maiores a cuidar, amar e respeitar os bichos, os morros, as plantações, a família, os outros colonos e até o dono de tudo. Sem saber o que são sonhos, queria ser como o pai e os irmãos. E também sonhava embarcar no trem.
Nas noites estreladas fragmentos de asteroide ou meteoritos riscavam o céu. Era o manto mais bonito que Sebastião deitado na rede gostava de ver, apontava o dedinho a cada risco no céu e sorria sempre com seu jeitinho encabulado para mostrar a quem estivesse ao seu lado. 
Assim eram os dias e noites do caçula até o anúncio de um novo rebento na família. Sem saber o porquê perdeu o amuleto da sorte, sua fonte de melhor nutrição, calor e afeto. 
Já era crescido, não poderia mais mamar em sua mãe, já percebera isso há um tempo, agora era definitivo e só lhe restava pedir, resmungar e chorar agarrado às pernas da mãe.
Aos poucos o pequenino Sebastião foi entristecendo pela saudade do colo e leite materno, ou de uma possível doença.
Foi perdendo as forças, não se animava nem mesmo quando o chamavam para ir na cidade, passar na venda e comprar um doce. 
Antes dele adoecer, o dia de ir no vilarejo era esperado e disputado por todos irmãos, pois nem todos podiam acompanhar os pais. O que Ião mais gostava de lá era ver o trem bem de pertinho, apitando e anunciando sua chegada na estação.
Lá da roça via o trem, mas era bem distante em um trecho da mata, largava tudo e corria de onde quer que estivesse para olhar fascinado. As vezes o trem passava à noite, as luzes dos faróis na mata escura faziam o pequeno dar pulos de alegria:
-Ô mãe,  ói trem, ói trem...
- Piuí, piuí, piuí...gritava correndo para alcançar o alto da pedra no terreiro para olhar o trem lá longe, antes que desaparecesse na encosta da montanha.


Há algumas semanas as famílias não se reuniam mais para os causos, todos entristecidos pelo "minino" que não melhorava. Chás de ervas, rezas, benzeções e visitas custosas ao "doutor" da cidade, nada parecia animá-lo.
Quando as estrelas cadentes riscavam o céu estrelado, os colonos que sempre clamavam por desejos básicos, alimento na mesa, saúde e que todas crianças vingassem, agora só pediam pelo pequeno Ião:
-Senhor, olhe por ele, assim como olha pelas estrelas e tudo que há no céu e na Terra.

Em mais uma noite de cansaço toda gente dormia, menos a mãe e Sebastião.
A mãe o pegou de seu cantinho no colchão e o acolheu nos braços, sentando-se na velha cadeira de madeira, o colocou sobre seu ventre crescido quase prestes a parir. 
Ele já não falava, olhinhos caídos, apenas murmurava poucas palavras desconexas, a febre já não cedia, não largava o corpinho frágil.
A mãe que não cabia em si de tanta oração e tristeza, impotente, cantou baixinho em seu ouvido uma canção de ninar. 
Lá fora só o som noturno da mata, grilos, rãs e sapos com suas cantorias.
Em um canto da janela começava a despontar a lua cheia, mas o trem não passaria na noite iluminada para alegrar a criança.
Sebastião ergueu num esforço inesperado o corpinho debilitado, agarrado às mamas da mãe, alcançou com o olhar a lua cheia emoldurada pela janela aberta  e esboçou um sorriso. 
Apontou o dedinho: 
Ô mãe, ói trem, ói trem, ói trem...
Até a voz fraquinha se calar noite adentro e a lua atravessar a janela do casebre.

Todos ali e as estrelas lá do céu choraram pelo pequeno Sebastião, que de alguma forma naquela noite de luar embarcou no trem entre as montanhas e se foi para nunca mais voltar.


Dalva Rodrigues
06/06/2021

Nota: Com respeito à memória de minha vó, peço desculpas pelas possíveis e prováveis distorções do conto e  licenças poéticas.
Ainda me lembro de seu jeitinho e olhos marejados ao contar  a história de Ião.