Já faz tanto tempo, ainda (e só) lembra seus sapatinhos brancos de furinhos, as quedas no quintal rústico cheio de pedras e barro.
Os primeiros passos do corpo, da existência, a quedas, o levantar, a persistência, finalmente o dominar a grande arte de caminhar e se aventurar no futuro todo que tinha pela frente: campos, árvores, estradas...
Agora o mundo seria grande de se admirar, brincar, conquistar...Será que em tenra idade teria estes pensamentos?
Um dia viu os mesmos passos no filho, a sentença se repetia cheia de esperança, agora com a consciência que não tinha quando vivera aquele momento. Magia.
Os braços estendidos eram a palavra chave para o pequeno se atrever. Suas mãos o apoiariam quando caísse em suas tentativas. Um sorriso largo lhe diria:
-Vamos, você consegue!
Não viu seus primeiros passos, mas vibrou com o relato sobre eles.
Logo o veria correr pelos pisos impermeáveis da modernidade, poucos campos, árvores e estradas.
As texturas da natureza longe dos pés não foram limitantes para as descobertas.
Nunca foram, nunca serão em tempo algum.
Tudo muda, é natural.
A vida passa muito mais rapidamente quando se gera e/ou zela por outra vida.
Ganhamos vida enquanto sentimos o tempo passar para enfim nos levar.
Envelheceu.
As pernas já não correm.
Os braços não são fortes, mas ainda acolhem.
Certo dia a tempestade chegou enquanto estava no ônibus. A porta se abriu em sua parada, a enxurrada mal deixava ver a calçada.
Medo de descer, das águas, dos joelhos. Medo da falta do vigor destemido deixado para trás.
Não via mais os sapatinhos brancos com furinhos ao olhar para os obstáculos...Via o degrau, o abismo entre ele, as águas túrbidas e a calçada.
Segundos se passaram no silêncio da indecisão.
Antes que se decidisse, um rapaz que nunca vira e descera na frente, voltou e estendeu os braços:
-Venha, você consegue!
Os braços foram acolhidos pelas jovens e fortes mãos.
Assim desceu em segurança, com o apoio dos braços e mãos desconhecidas, humanas.
Já na cobertura do ponto de ônibus, agradeceu com emoção e o desejo de que a vida lhe retribuísse.
Nunca saberá se era um esquerdopata comunista ou um direitista fascista.
Era humano, naquele momento.
A vida é cíclica, mal nos damos conta dos passos dados em cada fase da vida e no peso deles.
Uma pena soprada ao vento.
Dalva Rodrigues
06/12/2019
Duas cenas maravilhosas do filme Forrest Gump.
Corra, Forrest, corra!
A pena, na cena final