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6 de dez. de 2019

Flutuando como uma pena



Já faz tanto tempo, ainda (e só) lembra seus sapatinhos brancos de furinhos, as quedas no quintal rústico cheio de pedras e barro.

Os primeiros passos do corpo, da existência, a quedas, o levantar, a persistência, finalmente o dominar a grande arte de caminhar e se aventurar no futuro todo que tinha pela frente: campos, árvores, estradas...

Agora o mundo seria grande de se admirar, brincar, conquistar...Será que em tenra idade teria estes pensamentos?



Um dia viu os mesmos passos no filho, a sentença se repetia cheia de esperança, agora com a consciência que não tinha quando vivera aquele momento. Magia.

Os braços estendidos eram a palavra chave para o pequeno se atrever. Suas mãos o apoiariam quando caísse em suas tentativas. Um sorriso largo lhe diria:

-Vamos, você consegue!

Não viu seus primeiros passos, mas vibrou com o relato sobre eles.

Logo o veria correr pelos pisos impermeáveis da modernidade, poucos campos, árvores e estradas.

As texturas da natureza longe dos pés não foram limitantes para as descobertas.

Nunca foram, nunca serão em tempo algum.

Tudo muda, é natural.

A vida passa muito mais rapidamente quando se gera e/ou zela por outra vida.

Ganhamos vida enquanto sentimos o tempo passar para enfim nos levar.


Envelheceu.

As pernas já não correm.

Os braços não são fortes, mas ainda acolhem.

Certo dia a tempestade chegou enquanto estava no ônibus. A porta se abriu em sua parada, a enxurrada mal deixava ver a calçada.

Medo de descer, das águas, dos joelhos. Medo da falta do vigor destemido deixado para trás.

Não via mais os sapatinhos brancos com furinhos ao olhar para os obstáculos...Via o degrau, o abismo entre ele, as águas túrbidas e a calçada.

Segundos se passaram no silêncio da indecisão.

Antes que se decidisse, um rapaz que nunca vira e descera na frente, voltou e estendeu os braços:

-Venha, você consegue!

Os braços foram acolhidos pelas jovens e fortes mãos.

Assim desceu em segurança, com o apoio dos braços e mãos desconhecidas, humanas.

Já na cobertura do ponto de ônibus, agradeceu com emoção e o desejo de que a vida lhe retribuísse.

Nunca saberá se era um esquerdopata comunista ou um direitista fascista.

Era humano, naquele momento.

A vida é cíclica, mal nos damos conta dos passos dados em cada fase da vida e no peso deles.

Uma pena soprada ao vento.


Dalva Rodrigues
06/12/2019




Duas cenas maravilhosas do filme Forrest Gump.



Corra, Forrest, corra!



A pena,  na cena final













4 de nov. de 2019

As cores da rosa

As cores da rosa

Olhava deslumbrada a roseira silvestre com seus galhos flexíveis sem espinhos, de onde pendiam suas flores.

Uma roseira que dá rosas brancas, amarelas e cor-de-rosa, no mesmo pé!

Não é para se encantar?

Comentava convicta para outras pessoas sobre a tal roseira e suas flores coloridas.

Finalmente consegui uma muda que vingou, logo seu primeiro botão solitário despontou para o mundo.

Todo dia observava seu progresso, de que cor seria a primeira rosa?


E a rosa nasceu branca.


A rosa foi uma jovem amarela.

A rosa morreu cor-de-rosa, ligeiramente desbotada.


Disse a raposa ao Pequeno Príncipe:

"Foi o tempo que dedicaste à tua rosa que a fez tão importante."


Consciente ou não, posso morrer na convicção do que a aparência me mostra, sem compreender as fases e cores de cada rosa.

Não tivesse cultivado a roseira, não teria  observado seu primeiro botão pouco a pouco se transformando, diluindo minha verdade sobre suas flores.

Seria eternamente a roseira sem espinhos e suas rosas coloridas que algumas vezes via lá no condomínio onde minha mãe mora.
Não tenho foto da roseira carregada, mas dá p ter uma ideia.


Andamos tão apressados em nossas certezas que a primeira impressão e interpretação, quase sempre é a que fica.

Esse é o novo ritmo ditado das relações  que acabamos aceitando? 
Será por  preguiça de pensar, orgulho, impaciência para observar e tentar enxergar as outras possibilidades, que nos impregnamos dessa primeira impressão do que vemos, ouvimos  e pior, replicamos?
Competimos com os outros para ter razão, mesmo sabendo que somos diferentes?

A vida pede um cadinho de paciência para cultivar nossas relações, vamos nos desarmar, estamos à flor da pele com tudo, só que não de flores, de palavras que são granadas.
Muitas cismas infundadas, pouco ouvir, pouca reflexão.

Da próxima vez que um amigo disser: -Vamos fazer uma caminhada?

Pense que é só um convite amigável, mais nada.

Não pense que estão achando que está gordo/a e sedentário/a.
Não ache que vão lhe pedir ajuda.
não ache que vão lhe pedir dinheiro.
Não ache que vão lhe oferecer dinheiro.
Não ache que vão lhe dar uma cantada.
Não ache que a pessoa não tem o que fazer, ou que ela ache que você não tem o que fazer.
E por aí vai...

Não deixemos o achismo tomar conta de nossas relações.

Se não quiser ou puder ir, simplesmente agradeça o convite e ponto final, sem respostas indiretas facilitadas pelas redes sociais, não alimente neuras, elas corroem os afetos talvez por coisas que muito provavelmente só existiram em nossas mentes inquietas.

Não somos o centro do mundo dos outros, nem dos que mais nos querem bem.

Palavras insensatas podem ferir e o estrago não pode ser apagado.

Não acredito que somos eternamente responsáveis pelo que cativamos (como disse também a raposa), mas deveríamos procurar antes de tudo a compreensão entre os seres, não é melhor assim?

E se não for possível, opte pelo silêncio, pela distância.

Certamente não é fácil.

O Pequeno Príncipe disse: 

-São tão contraditórias as flores.

Quase ao terminar de escrever este texto minha roseira que desta vez está com 4 botões, um deles abriu e surpresa, dessa vez com uma tonalidade de alaranjado. 


Todas as cores aparecem lentamente, se mesclando à velha e nova cor, provavelmente já definida em seus genes, mas sofrendo interferência do solo, da luz, do vento, dos cuidados de quem cuida (ou não).

E se observarmos a rosa à noite, as tonalidades também são diferentes, ou será que já é efeito do tempo entre uma foto e outra?

Alguém discorda que o Pequeno Príncipe tinha razão? Elas definitivamente são contraditórias.






E falando em Pequeno Príncipe, abaixo o quadro que minha madrinha/tia pintou para mim.

A outra tela também foi ela que fez, o vilarejo em Minas Gerais onde morava na infância, meu pai...


Passei dois dias com ela, dias de harmonia, tranquilidade, sem inquietações de internet e outras mídias, ela fez canja de galinha que é a melhor do mundo para mim, eu cuidei do jardim que ela já está com dificuldade para lidar, lembramos do passado, vimos fotos, falamos de receitas... 
Joguei Rummikub com minha prima, que acabou de sair de uma cirurgia e está ótima.

A vida simples como ela deveria ser, cada um dando seu melhor possível naquele momento, sem cobranças, sem escravidão de extensões virtuais.

Isso para mim é felicidade, sou muito grata a ela.

Afinal, não são só as rosas que são efêmeras e todas elas são únicas.


A raposa:"Só se vê bem com o coração" 

22 de set. de 2019

Meninas, igarapés, choros e gritos.


Esta arte de rua em estêncil, criada por uma mulher, fica no centro de São Paulo, próxima a Câmara dos Vereadores na Rua Santo Antonio. Difícil não se sensibilizar ao passar por ela e ler a frase, seus supostos significados.


A frase do mural, na foto tirada de dentro do ônibus está encoberta pelas árvores que parecem um refúgio rodeado de concreto,uma pequena mata para a garotinha indígena representada na arte que grita aos nossos governantes toda destruição e tristeza que causamos. 
Ela quer proteção para as matas, bichos e povos que cuidam das riquezas naturais.

Havia tantos igarapés. Havia tantas matas.

A destruição pode ser lenta, mas de alguma forma um dia ela afetará até os que a incentivam ou seus descendentes. Se é que os donos de todo tipo de poder se importam com isso ou com os aprendizados do passado. 

Rios de lama e lágrimas se espalham nos cursos dos rios e nos olhos dos alvos de ganancia e insensibilidade.



Ághata, violência, balas
Menina Ághata


A menina da comunidade morre assim, friamente, sem despedidas, sem aviso.Fim.
Só o choro, sofrimento infinito de quem a amava e ficou.

Só existe medo onde a violência combatida com violência impera. 
Medo é o caminho diário de quem precisa ganhar o pão, sobreviver, fingir-se invisível às balas que cortam os ares, rompem paredes, penetram corpos, exterminam meninas, meninos, famílias, sonhos...
Na verdade o sonho que se tem é sobreviver , dormir e acordar sem ser alvo de balas que destroem seu lares, sem pedir licença, sem compaixão. 

Meninas não deveriam ser mortas, deveriam estudar, crescer, tornarem-se mulheres,lutar por um viver melhor,em paz. Por um mundo que não nos dão.

Meninas precisam sobreviver.
Mulheres de luta não podem ser assassinadas.
Mulheres de luta devem ser lembradas em todos cantos do mundo.

jardim



A culpa é de quem?

De onde vem as balas?
De onde vem o dolo?
De onde vem toda destruição?

Do cidadão?
Do policial bem armado?
Do malandro acuado?
Do traficante poderoso?
Do vereador relapso?
Do prefeito sem noção?
Do governador que decola de fuzil na mão
mirando a favela e o  poder da nação?
Do congresso descompromissado?
Dos juízes sem ética e parciais?
Do presidente que dá cartas brancas, 
 incentiva todos os vilões?
Da  nossa omissão?
Do voto
daqueles que não se importam
com a dor que é apenas do lado de lá
de onde ainda
podem se abrigar?!

Não se iludam
 balas e destruição
 podem estar em todo lugar.
Um  dia  podem lhe acertar.
Será sua vez de chorar
ou sua família
pelo que não se pode resgatar.


Dalva Rodrigues
22/09/2019

Paz sem voz
Não é paz, é medo!

O Happa


“Sabe qual era a arma que tinha dentro da mochila da minha neta? Lápis, caderno, apontador, livro. Tinha um simulado que ela fez nessa semana e tirou 7! Essas eram as armas que a Ágatha gostava de usar.” (Airton Félix, avô da menina morta por tiro de fuzil no Rio)

A frase acima foi colaboração da amiga, Chica.







1 de ago. de 2019

Bolo de Fubá

Sempre tem aquela receita que você pediu tanto, nunca fez e acabou amarelando no papel com o passar dos anos.

Minha vó paterna fazia bolos de cabeça, batia à mão e ficavam deliciosos, dificilmente dava errado.

Amava especialmente os bolos de fubá, eram fofinhos e o cheiro dele no forno atiçava a vontade de tomar o café da tarde. 

Bolo simples na mesa, sem cobertura ou recheio,  café passado no coador de pano que caia em fio no bule, subindo a fumacinha e o aroma se espalhando...Ah, que saudade dessas coisas!

Esses dias filho comentou que comeu na festa junina da mãe da esposa do pai, um bolo de fubá muito gostoso, com uma casquinha bem fina de chocolate (casquinha mesmo, não calda).

Das receitas de bolo de fubá que tenho feito, a maioria apesar de gostosas não eram como  os feitos pela minha vó que usava fubá mimoso, aquele que precisa de bastante cozimento que ela usava para fazer aquelas polentas inesquecíveis de textura cremosa, finíssima.

Lembrei de uma receita que tenho há mais de 25 anos, dos tempos que trabalhava no Metrô, em datas comemorativas ou mesmo sem motivos, sempre rolava umas comidinhas na escala noturna que chamávamos de noitadas.

Uma colega de serviço levou um bolo de fubá que nunca esqueci, era fofinho como o de minha vó, muito saboroso.

Anotei os ingredientes, mas não o modo de fazer, então a receita abaixo, filho  fez do jeito que achei que seria o mais provável. 


MODO DE FAZER

Bata as claras em neve e reserve.
Bata bem as gemas com o açúcar (usei só 1 1/2 x) e o óleo.
Peneire juntos, farinha, fermento e fubá e alterne misturando  (sem batedeira) na massa com o leite.
Por último as claras em neve delicadamente.
Forma  untada com óleo e polvilhada com farinha (só no fundo).
Assadeira 32 x 22 x 5
Forno pré aquecido, médio.

Obs: Usei fubá mimoso mesmo.
         Usei xícara medida de 240 ml.
         Coloquei + ou - 1 col (café) de erva doce

É um bolo simples, nem precisa de cobertura, mas como filho estava com vontade...
Depois de frio cobrimos com cobertura fracionada meio amargo e chocolate ao leite derretidos (usei os dois tipos para não ter que dar o choque térmico) e completamos com granulado.

lembranças de infância
Bolo de fubá mimoso


Lembrou bastante o que minha vó fazia.
Comi com alegria lembrando a simplicidade daqueles dias e o quanto fui privilegiada por ter tido uma vó com mãos afetuosas que me banharam, alimentaram, ensinaram. Dádiva.

E obrigada, Elza Bijjot pela receita.



1 de jul. de 2019

O tempo das plantas, mortandade de abelhas e saúde de todos

Passei este semestre observando o pé de amor agarradinho na esperança de obter algumas sementes para uma amiga.

Apesar dessa planta estar por aqui há mais de vinte anos, não reparei no tempo dela. Sim, plantas tem seu tempo e certamente não é o tempo que nós desejamos.

Elas dizem silenciosamente: 

-Paciência, adormecemos e acordamos, no nosso tempo. As flores são minhas, não suas.

O começo da primeira florada este ano e um visitante nada esperado:

Vaga-lume em plena luz do dia?


As flores se tornam sementes, mas nem todas conseguem esta façanha, a maioria cai, só as mais resistentes do ramo não enfeitam o solo com seu rosado e tem a tarefa de possibilitar vida nova.

As sementes só estarão boas para germinar quando estiverem bem secas e mesmo quando plantadas nem todas germinam. A seleção é rigorosa.


Observe o tanto que cai de flores em relação ao tanto que fica.

Cachos e mais cachos formosos vão nascendo, se espalhando e subindo em qualquer lugar que alcançarem e puderem se "segurar".

Não sei o que é, mas achei bem interessante este tipo de casulo, me pareceu de aranha, mas nunca descobri.

Muitas abelhas frequentam a planta o dia inteiro e essa é a espécie mais comum:



Já tem um tempinho que tenho ouvido falar que as abelhas estão morrendo, mas só no último mês  percebi isso por aqui, elas quase não aparecem mais, aparecem mortas nos arredores, entram em casa meio doidas, desorientadas.

Dei uma rápida pesquisada e parece que é o uso excessivo de agrotóxicos que estão cada vez mais sendo liberados pelo ministério da agricultura, mais fabricantes deles os colocando no mercado.

Será que só faz mal para esses serzinhos tão importantes na natureza? 

As abelhas tem seu tempo, será que estamos interferindo no tempo delas e no nosso?

Triste como isso tem sido tratado e pouco se questiona.

 Link   de uma matéria sobre o assunto.

E para encerrar, uma foto linda de uma visitante que ficou vários minutos passeando pelos últimos galhos da última florada, já sem força.

Semana passada podei, o amor agarradinho, agora ele dorme. Espero acorde como tem feito estes anos todos, se esse for o tempo dele.


Se não prestamos atenção, não vemos essa perfeição.
A transparência é linda!


E de última hora um vídeo fresquinho no tema agrotóxicos.










13 de jun. de 2019

Borboletas e sonhadores na sala de estar

Eles andavam pelo bairro,  corpos desgastados pela vida dura, pela cachaça, vermelhos de sol.

Algumas vezes sóbrios, na maioria não.

Os dois amigos perambulavam pelas ruas em busca de alguém que lhes dessem um prato de comida, roupas ou uns trocados por pequenos fazeres como carpir mato, carregar entulho, uma vez que na periferia quase todos não podem pagar para descartar de forma correta.

Se paga, falta o dinheiro da água, da luz, do pão ou do IPTU.

Sorte dos catadores?

Azar da sociedade?

O entulho poderia ser queimado poluindo o ar, nunca se sabe que casa tem um idoso ou criança com doença respiratória.

Ou quem sabe ficar entulhado nos quintais renderia uns perigosos escorpiões e aranhas para compartilhar com toda vizinhança, também não é uma boa ideia.

Mas para alegria de nossos protagonistas, o descarte na maioria das vezes vai para uma calçada qualquer e a prefeitura vem recolher depois de um tempo,depois que os vizinhos reclamam.

Talvez o caminho da solução seja outro, o qual ignoramos ou fingimos ignorar. 

Eles não questionam, simplesmente existem.

Foi um dia especial, Adelino e Manuelzinho encontraram dois sofás de couro desgastados pelo tempo, dispostos na calçada em frente a casa estilo anos 70, provavelmente deixado pelos donos da casa para que alguém pegasse para reformar, estrutura de madeira boa, uma reforma os deixariam lindos, valeria a pena.

Olharam-se com cumplicidade e não pensaram duas vezes.

Sentaram-se.  A alegria invadiu os semblantes vazios, sentiam-se como cidadãos dignos de uma sala de estar particular, ao ar livre, nada de papelões e muretas fedidas. 

Um confortável par de sofás e uvas rosadas pendendo em lindos cachos pelo muro ao lado compondo o lúdico cenário.

Era como se dissessem: -Pessoas, olhem para nós!

Entre um cigarro e um gole de cachaça eles conversaram por horas enquanto os transeuntes passavam olhando a cena pitoresca.

Assim como nós em nossas próprias salas de estar, sob um teto aconchegante dividimos cervejas e um café com amigos e família, eles socializaram o momento oferecido pelo destino.

Aliás, eram duas cenas pitorescas,  em ritmo amoroso, um casal de borboletas acasalava despudoradamente ao lado do sofá em plena luz do dia.

Poucos as observaram.


acasalamento
Juntas até que a morte as separem

As horas passam, os amigos confabulando, as borboletas curtindo o sexo explícito na calçada, em pura ingenuidade da natureza, sem se preocuparem se poderiam ser esmagadas ou chamadas de promíscuas.

Depois de umas três horas de transa as borboletas lutaram (ou algo parecido) para se desprenderem e ao final da batalha  só restou uma, morta, no passeio público.

Finda a união que parecia tão duradoura.

Não sei quanto tempo os sofás ficaram expostos e seus convidados puderam aproveitar.

A vida não traz presente todo dia, nem amor.

Outro dia Vi Adelino deixando uns cacarecos no conhecido lugar de descarte, um homem passou de carro,  ralhou com ele e olhou para mim como que esperando validar sua atitude de bom cidadão ao criticar o pobre coitado.

Fiquei quieta, qual seria o ângulo que ele queria que eu visse para aprová-lo em sua indignação pelo catador malvado?

-Adelino, e o Manoelzinho? -Faz tempo que não o vejo.

-Arrumou emprego por uns mêis no canteiro de obra de um condomínio, tava bom, pouca cachaça, aí a construção acabou e ele não conseguiu outro emprego.

-Pegou o dinheiro da indenização, avisou a famía que iria pra sua cidade no nordeste, estava com saudade da filhinha, havia de conseguir um emprego por lá, mió que carregá peso na cacunda por uns trocados.


- Mas foi triste dona, a notícia correu que ele levava dinheiro, esperaro ele, robaro e fizero  judiera com o pobre.


-A última coisa que soube é que ficô acamado e bobo das ideia.


-Que tristeza, a esperança durou tão pouco.

-Cuide-se Adelino, e não fique triste com o comentário do rapaz, certamente ele não consegue vestir a sua pele para compreender seu "trabalho".

Segui meu caminho lembrando deles sentados na sala de estar ao ar livre, felizes.

Algumas vidas são mais efêmeras que outras, tão frágeis em sua invisibilidade como as borboletas.

Aproveitam as felicidades do acaso antes que as esperanças acabem em uma calçada qualquer.

O fim do êxtase 


Dalva Rodrigues
13/06/2019












13 de mai. de 2019

Um cachorrinho no nhoque!

Sábado foi um dia intenso, mas ao final valeu a pena em todos sentidos, foi um dia feliz, apesar de toda canseira que tomei.

A parte boa que vou contar é que almocei com minha mãe, conversamos bastante, pedi para ela  me contar histórias do passado da família, muitas até já contadas, conforme ia ouvindo ia relembrando.
A idade vai chegando, melhor anotar tudo antes que  esqueçamos de vez.

Trocamos sementes, falamos das nossas plantas, ela está achando ótimo que agora eu esteja me interessando por elas.




Outro dia fiz nhoque de mandioca, receita que ela fez de cabeça e me ensinou por telefone mesmo.
No final das contas  não deu ponto de cortar os rolinhos, para não acrescentar mais farinha e perder sabor, fiz modelados com duas colheres e pingado, como em bolinhos de chuva. 
Não ficaram bonitos, mais muito gostosos e foi muito mais fácil, rápido e sem fazer sujeira.
Fotografei o prato e ontem mostrei a foto para ela.
A reação automática assim que colocou os olhos na foto do celular:

-Olha um cachorrinho, direitinho, que bonitinho!


mandioca
Nhoque de mandioca com frango
e cebolas quase queimadas com abacaxi :D


Arregalei os olhos e ainda demorei um cadinho para enxergar o bicho completo, com orelhas, focinho, nariz, olhinhos e corpinho...Com ajuda dela, claro!

Acabou de completar 80 e esperta que só! Não é um amor?!
Agora sei porque ando vendo figuras em nuvens e outras coisinhas! rs

Conseguiu encontrar o cachorrinho?



A parte level hard do dia fica para outro post, uma aventura para buscar um criado mudo que comprei pela internet.

Como fiz o nhoque:

Comprei um pacotinho de mandioca já descascadas, cortada e lavadas. Não sei o peso, imagino uns 700 g.

Cozinhei na panela de pressão com um pouco de sal, uns 15 minutos, chegou a quase desmanchar, acho que por isso não deu ponto, absorveu muita água.
Pode cozinhar sem ser na pressão.

Amasse e deixe esfriar (segredo de nhoque, nunca coloque a farinha na batata ou seja lá o que for quente, ela sempre vai pedir mais farinha para dar o ponto).

Depois de fria acerte o sal e temperinhos se quiser, junte 1 ovo, 1 colher de sobremesa de manteiga, misture, coloque de 2 a 3 colheres bem cheias de farinha, vá colocando e misturando, sentindo o ponto.

Coloque bastante água na panela, qdo ferver vá pingando a massa modelada com 2 colheres de chá.

Assim que forem subindo vá retirando com a espumadeira e coloque em água fria.
Conforme vão ficando prontos já transfiro para outra vasilha com um pouco de azeite para não grudar.

Se for servir com molho já está pronto.

Eu gosto de deixar descansar antes de finalizar porque gosto só com manteiga e alho, dou uma douradinha neles na frigideira anti aderente, cebolinha verde ou parmesão para finalizar e pronto. Se estiverem morninhos grudam.

Bom apetite!!





19 de abr. de 2019

Minha avó, o Lava-pés, meninos e meninas

Minha avó paterna, mulher humilde, de muita fé,  morreu aos 103 ainda transbordando fé em deus, tinha esperança em dias melhores, em pessoas melhores, em ressurreição.




Enquanto pode se ajoelhou sobre o tapete para fazer suas longas orações num murmúrio baixinho, com as mãos entrelaçadas sob a cabeça baixa, antebraços apoiados no colchão. 
Assim pedia a deus que olhasse por todos.
A imagem ainda é nítida em minha mente mesmo depois de tantos anos.
Todas as camas, todos os tapetes.

Tinha que ser assim, de joelhos. 
Lembro quando os anos pesaram (e olha que demorou) ela se sentia triste por não poder mais ajoelhar e pedia perdão a deus por isso.
Eu sempre falava para ela:

-Vó, se deus é tão bondoso e justo como a senhora diz, saberá compreender, certamente.

Lembro vagamente de alguns ritos da igreja adventista que ela frequentava, sempre a acompanhei desde bem pequena. Um deles era a Semana Santa, com cultos todos os dias, orações especiais e um ritual chamado Lava-pés, relacionado a uma passagem bíblica onde Jesus lavou os pés de seus discípulos.

Previamente já se sabia quem seria a irmã (era assim que se tratavam) com a qual fariam dupla para a cerimônia onde as mulheres se sentavam nas cadeiras de madeira escura cada uma com uma bacia à sua frente, no chão.

As crianças ficavam em outra sala com atividades enquanto os adultos participavam da cerimônia, mas algumas vezes conseguia observar as mulheres, não sei o porquê mas lembro só das mais velhas, sentadas nas cadeiras tendo seus pés gentilmente lavados e depois secos pela irmã  ajoelhada à sua frente. 
Depois elas trocavam de posição, tudo se repetia.
Hinos eram tocados em um piano, as pessoas cantavam acompanhando a letra no hinário que parecia uma bíblia com letras e notas musicais.

Não sabia os significados daquilo tudo, achava intrigante. Queria ter sido uma criança menos tímida para questionar e saciar minha mente sempre inquieta e curiosa.
Provavelmente eles explicavam para as crianças na escolinha sabatina, mas não me lembro, imagino que não eram as respostas para as perguntas que eu me fazia, como por exemplo o rito ser separado entre homens e mulheres.
Mas quem dava trela para conversa de criança?

Ao final do culto neste dia especial havia uma festinha com doces, pipoca, sanduíches e groselha com água e gelo colocada em grandes caldeirões de alumínio e servida em canequinhas com uma concha.

Nessa hora a diversão era garantida, já não precisávamos ficar em silêncio, podíamos correr e gritar com as brincadeiras como talvez tenha feito o menino Jesus com os outros meninos e meninas há mais de 2000 anos.

Mulheres não podiam usar calças.
Olhem a rebeldinha!



Mesmo não sendo religiosa hoje penso no quanto esse é um ritual bonito e reflexivo acima de tudo.
Jesus usava de um simbolismo sensacional para se expressar. 

Outro dia a amiga Chica perguntou aqui com quem do passado você gostaria de conversar, alguém com o qual não tenha conhecido...Fiquei de pensar e agora me veio a resposta:
 -Chica, gostaria de ter levado um papo com Jesus!

                                           *****
Além da humildade de colocar-se um diante do outro e lavar os pés como iguais me faz pensar que a vida é cíclica, uma incógnita, que nunca saberemos em que posição poderemos estar amanhã.

De quem lavaria os pés hoje?

Quem lavaria seus pés amanhã, se precisasse?



Obrigada pela leitura!