Separa casas, famílias, rotinas.
Descobrimento.
O barraco enorme, piso de terra batida.
Outro quintal, outro universo: cana, vaga-lumes, fogueira, fitas coloridas, crianças, brincadeiras e som:
"Batuque na cozinha, sinhá não quer, por causa do batuque eu queimei meu pé..." (canta: Martinho da Vila)
Se não pode estar lá, sobe telhas velhas empilhadas.
Alcança o muro, amplia o olhar:
Patinhos amarelinhos são anjinhos.
Têm asas, não sabem voar.
Andam desajeitados, quá, quá, quá..
Muitas borboletas, flores, árvores e areia.
No muro abre o livro na imaginação.
Aprende histórias, apreende na memória.
Outro muro
Ao fim da avenida a rodovia leva ao mar.
Todo cuidado para atravessar, sempre morre um por lá.
Pernas tremem, medo, sereno da manhã não deixa ver os carros na estrada.
O medo não é de atravessar, morrer.
É dia de vacina, posto de saúde, agulha não dói, criança não chora.
Perto dali há um muro alto, muito alto, toda criança ouve falar:
Hospício dos loucos, quem não é normal, vai para lá.
O que é ser normal?
Medo de ser levado para o universo paralelo das histórias de horrores de onde não se consegue escapar.
Será mesmo o louco perigoso? As histórias são verdadeiras?
Pernas tremem na espera pela agulha, medo de não aguentar a dor, chorar.
E se chorar, o Sanatório Charcot vem buscar!?
Conflitos e aflitos que a vida leva para além de muros misteriosos e seus gritos perdidos nos pavilhões.
A espera é longa, a picada é curta.
Medo se vai, não vai brincar no mar.
Passos deixam o muro para trás.
O camundongo
Embaixo da grande cama de casal, olhos atentos.
Observa sem medo o camundongo que deixa sua casinha, levemente anda pelo assoalho velho de madeira.
Encara o observador, ignora, sobe na ratoeira como se flutuasse, cuidadosamente retira a isca, carrega para a minúscula passagem arredondada desenhada no rodapé.
Tão pequeno, frágil.
E esperto, ratoeira mal armada não desarma.
Um novo gato de rua se faz necessário, o camundongo some.
Décadas se passam, um camundongo aparece.
Pelo vidro da janela fechada o camundongo encara:
-Ei, deixem-me entrar!
Olhos fixos nele, abre a porta, o bicho no mesmo lugar acompanha o movimento.
Olhos nos olhos, matar ou não matar?
Conflito existencial, cadeia alimentar, sanitarismo.
Uma vassourada de leve, um spray de veneno.
Foge, faminto e vivo.
Todos querem sobreviver, incluindo vírus.
Ouço leves passos no telhado.
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Capa do compacto duplo (1972) de Michael Jackson |
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Carteira de Saúde SP 1946 (do meu avô paterno) |